TAURED WORLD PROJECT

 
 

 

 

PARTE 2 | O Aeroporto

 

1 - A Surpresa.

Meu coração deu um salto no peito e um calafrio estreceu meu corpo. Em vez das fracas luzes fluorescentes do posto de gasolina, fui impactado por uma cena estranha e desoladora — um amplo saguão de aeroporto que parecia ter sido devastado por algum cataclismo apocalíptico estava bem diante de mim. O ar cheirava levemente a plástico queimado e concreto úmido.

Meus olhos percorreram rapidamente o ambiente, absorvendo a cena bizarra à minha frente. Para onde eu olhasse havia cacos de vidro e detritos espalhados pelo piso. Cartazes de propaganda pendiam tortos nas paredes, cobertos por caracteres japoneses que confirmaram minha suspeita: eu não estava mais no meu mundo. Os assentos espalhados pelo terminal estavam virados ou completamente destruídos, com estofamento rasgado, revelando armações metálicas enferrujadas.

As telas que deveriam exibir voos e horários pendiam do teto, mas todas estavam preenchidas por um brilho verde uniforme, como um fundo de chroma key esperando algo a ser projetado. Nenhum som, nenhum anúncio, nenhuma voz humana. Só um zumbido metálico distante.

As vitrines das lojas estavam vazias, algumas estilhaçadas. As escadas rolantes paradas, sustentavam figuras humanas imóveis sem expressão alguma — pessoas que pareciam congeladas no tempo, paradas como estátuas em meio ao silêncio sepulcral.

"Isso não pode ser real", murmurei, balançando a cabeça. O desespero me dominou quando me virei novamente para a porta do banheiro. Talvez, se eu voltasse para dentro, fechasse os olhos, contasse até dez, tudo desapareceria. Isso só poderia ser um pesadelo. Mas quando girei a maçaneta e abri a porta novamente, era outro banheiro completamente diferente e destruído.

 

2 – A Menina no Banheiro.

Apertei a maçaneta com força e fechei a porta do banheiro atrás de mim, como se pudesse selar aquele mundo bizarro do lado de fora. Meu peito arfava, tentando processar a cena absurda que eu acabara de testemunhar. "Isso não faz sentido," murmurei para mim mesmo, esfregando as têmporas. Precisava me acalmar. Talvez lavar o rosto ajudasse.

Mas quando olhei para onde deveria estar a pia, encontrei apenas uma parede rachada e coberta por algo viscoso e esverdeado. Franzi a testa, confuso, e virei-me para inspecionar o restante do ambiente. O que vi me deixou nauseado.

O banheiro estava irreconhecível. Não era mais o pequeno cômodo funcional do posto de gasolina. As paredes estavam cobertas por um lodo escorregadio que parecia pulsar levemente sob a luz fraca. Azulejos quebrados pendiam em ângulos tortos, revelando buracos escuros cheios de insetos mortos e poeira. O chão estava úmido, com pegadas lamacentas, como se alguém tivesse passado por ali recentemente. Havia três boxes ao fundo, suas portas metálicas enferrujadas balançando devagar movidas por uma brisa que não existia.

Nesse instante ouvi uma voz doce e meiga ecoando muito próximo a mim: “Oiiii...”

Girei-me rapidamente e senti meu coração martelando no peito. Encostada na parede oposta estava uma menina, com uniforme escolar japonês tradicional — saia azul escura, camisa branca de mangas curtas, cabelos lisos cortados na altura do queixo com uma franja reta cobrindo parte da testa. O rosto era pálido demais, como porcelana.

"Vamos brincar!" disse ela, inclinando a cabeça para o lado. Sua voz era suave e sombria ao mesmo tempo.

"Oi.... tudo bem?" respondi hesitante, notando imediatamente algo estranho. Ela falava em japonês e, embora eu não entendesse nenhuma palavra que dizia, minha mente traduzia tudo instantaneamente. Era como se cada frase entrasse diretamente nos meus pensamentos. Quando eu respondi em português, ela assentiu como se compreendesse perfeitamente. Telepatia? Aquilo era impossível... mas nada naquele lugar fazia sentido.

Ela apontou para o último boxe e com um sorriso se alargando, disse: "Lá dentro. A brincadeira começa ali."

Tão logo falou, foi se encaminhado para o último box e olhando para mim. Neste momento vi seus olhos mudarem de cor ficando totalmente amarelos.

Balancei a cabeça freneticamente, dando um passo para trás. "Não. Não quero." Minhas palavras saíram em um sussurro rouco, mas ela pareceu ouvi-las claramente. Com expressão séria, ela me encarou como se estivesse avaliando minhas fraquezas. Então, sem aviso, deu um passo à frente.

Única coisa que pensava era sair dali correndo e foi o que fiz. Abri a porta do banheiro e reencontrei a cena apocalíptica do saguão do aeroporto.

 

3 - Caminhando pelo Aeroporto.

Saí do banheiro às pressas com o coração disparado. Se aquela porta não era o caminho de volta para o banheiro do posto, talvez houvesse outra saída em algum lugar do aeroporto. Comecei a caminhar. O saguão do aeroporto era um panorama de devastação, como se tivesse sido esquecido por décadas ou sobrevivido a uma guerra.

As luzes no teto tremeluziam, emitindo faíscas ocasionais. Algumas pendiam por fios expostos. Os letreiros estavam apagados ou rachados, muitos com as telas trincadas. Passei por máquinas automáticas de biscoitos e bebidas. Estavam desligadas, cobertas de poeira e teias de aranha, mas ainda cheias de produtos em seus compartimentos interno a espera de clientes.

As pessoas… eram o pior. Andavam por ali, mas não eram normais. Algumas tinham olhos amarelos, outras pretos como carvão, e algumas — as mais inquietantes — olhos completamente vermelhos, brilhando sob a luz fraca.

A maioria delas não conversava. Apenas se olhavam, imóveis, trocando olhares longos e vazios, como se esperassem um sinal que nunca viria. Nos balcões das companhias aéreas percebi algo ainda mais bizarro. Pessoas envolvidas em diálogos intermináveis. Os lábios se moviam, gesticulavam repetidamente, mas não tinham expressões faciais e nem era possível escutar algum som.

As roupas eram antiquadas e sujas. Vi mulheres em quimonos antigos, alguns rasgados. Homens vestidos como samurais ou como executivos de terno e gravata, mas todos igualmente empoeirados, com roupas manchadas e rasgadas.

Os terminais de check-in estavam quebrados e sujos. As telas lembravam monitores antigos de tubo, da década de 80 de fósforo verde, com o prompt vazio piscando, como se esperassem alguém digitar algo.

Vi pessoas imóveis diante das máquinas. Outras gesticulavam com irritação, como se discutissem com aquilo que achavam estar vendo, mesmo que algumas telas estivessem totalmente apagadas.

O silêncio era absoluto. Mas se eu prestasse atenção, muito ao fundo, quase como um sussurro na mente, podia ouvir murmúrios: vozes de crianças, anúncios em alto-falantes, ruído de motores de aviões, o tilintar das rodinhas de malas — tudo ao mesmo tempo, como uma lembrança gravada naquele espaço ou como se em outra dimensão tudo funcionasse perfeitamente bem.

Em certos momentos, percebi que algumas dessas pessoas — ou o que quer que fossem — percebiam minha presença. Suas expressões se contorciam por um instante, como se minha presença ali fosse uma afronta. Rostos tensos, olhos acusadores. Mas nunca vinham até mim. Nunca falavam. Apenas... me odiavam em silêncio.

Decidi subir para o segundo pavimento. As escadas rolantes estavam paradas, cobertas de poeira e alguns degraus com terra. As pessoas permaneciam imóveis sobre os degraus. Eu pedi licença, mas ninguém reagiu. Com esforço, subi por entre elas.

Lá em cima, o cenário não era melhor.

Nos restaurantes e lanchonetes, as mesas estavam cheias, mas ninguém comia. As pessoas apenas se olhavam. Os garçons caminhavam em círculos, passando pelas mesas e balcões, sem jamais parar, como bonecos quebrados presos em um loop de programação.

Passei por uma livraria. As manchetes me chamaram a atenção. Jornais japoneses preenchiam as prateleiras, mas entre eles havia edições de grandes publicações ocidentais — The Guardian, Le Monde, La Stampa, Die Welt, The New York Times. Uma manchete em especial me fez parar: a foto de um homem discursando na Assembleia da ONU. Acima da imagem, lia-se: “Presidente de Taured discursa na ONU e prega paz e união entre todas as nações.”

Minha respiração parou. Taured existia naquele mundo, pensei espantado.

Continuei observando e vi a capa da revista TIME, com a foto do mesmo homem que aparecia ao lado de uma bela mulher com a legenda: “Casal do Ano.” Intrigado, quis pegar a revista para folhear e ver suas páginas, mas um assobio agudo e crescente, semelhante o despencar de uma bomba, vindo aparentemente de fora do aeroporto, desviou minha atenção.

Virei-me e caminhei até uma imensa janela de vidro que ia do chão ao teto. Ao chegar encontrei uma vista perturbadora. O céu era vermelho, tingido por manchas cinzentas, nuvens pesadas como as que precedem um temporal. A pista do aeroporto parecia um campo de guerra. A pista estava irreconhecível: crateras de bombardeios, aviões antigos destruídos e cobertos por mato alto. Aviões modernos estavam estacionados, mas tão enferrujados que pareciam fantasmas de metal. Mais adiante, na pista, um avião inteiro moderno jazia queimado, reduzido a uma carcaça carbonizada.

Pessoas com malas caminhavam até alguns desses aviões. Aproximavam-se, depois recuavam. Voltavam, hesitavam, e se afastavam novamente. Ficavam presas nesse ciclo repetitivo, sem jamais embarcar.

Virei-me lentamente, o coração pesado com aquela angústia que parecia me corroer por dentro. Cada detalhe gritava que aquele lugar não era meu mundo. Eu estava em algum canto escuro do universo ou da minha mente? O Japão ficava do outro lado do planeta, mas esse não era o Japão que eu conhecia, então, onde exatamente eu estava agora? A aflição crescia na alma porque eu não sabia como voltaria para casa.

 

4 - A Mulher Perdida na Estação.

No fim daquele pavimento desolado, algo chamou minha atenção. Uma escada rolante em movimento levava ao terceiro andar. A curiosidade me impulsionou a ir até lá e subir. Quando cheguei ao topo, fiquei surpreso ao encontrar uma estação de metrô dentro do aeroporto. Era um espaço amplo, mas igualmente desolado. As paredes de azulejos brancos e azuis estavam rachadas e cobertas por marcas de fuligem, enquanto cartazes desbotados promoviam destinos ininteligíveis escritos em japonês. O silêncio era esmagador, interrompido apenas pelo zumbido distante de lâmpadas tremeluzentes.

Fiquei ali parado por alguns segundos, observando o nada, até que ouvi o barulho metálico de um trem se aproximando, como um rugido vindo debaixo da terra. Espiei dentro dos vagões através das vidraças sujas, mas eles estavam completamente vazios. Não havia ninguém sentado nos bancos ou em pé, nem mesmo sombras se movendo lá dentro.

Quando o trem parou, as portas automáticas se abriram com um sibilo mecânico. Então, saiu do trem uma mulher jovem, de cabelos castanhos bagunçados e olhos vermelhos inchados, indicando ter chorado muito. Ela vestia um casaco leve e calça jeans desgastados e carregava uma pequena bolsa a tiracolo. Seu rosto estava pálido, parecendo confusa e completamente perdida. O trem fecha a porta e continua a viagem desaparecendo na escuridão do túnel.

"Por favor," disse ela com a voz trêmula enquanto se dirigia a mim. "Eu estou tentando voltar para casa há meia hora.”

“Você… você está preso aqui também?”, perguntou, ofegante. Não soube o que responder. Ela olhou ao redor com desespero. Sentou-se no banco de concreto e pôs as mãos na cabeça, trêmula. “Eu entrei no trem certo. Era o meu trem de sempre. Mas ele só passa por estações que nunca vi na vida. Tirou o celular da mochila, apertou a tela algumas vezes e mostrou. “Não tem sinal! Nada!”

Enquanto ela falava, outro trem apareceu ao longe, iluminando o túnel com faróis amarelados. Ela olhou para o veículo que se aproximava e disse: "Acho que vou tentar novamente voltar para casa," murmurou, mais para si mesma do que para mim. "Talvez desta vez eu encontre a linha certa."

"Você tem certeza?" perguntei, preocupado. "Isso parece perigoso."

Ela deu um sorriso triste. "Permanecer aqui é ainda pior. Se eu ficar, sei que nunca conseguirei voltar para casa." Antes que eu pudesse argumentar, ela correu para o trem que acabara de parar. As portas se abriram e logo se fecharam atrás dela com um clique definitivo e o veículo partiu rapidamente, sumindo nas sombras do túnel.

  

5 – Os Homens de Preto.

Desci as escadas rolantes, que agora estavam paradas, tentando alcançar o térreo. A cada passo, o ambiente parecia ficar mais opressor. Meus olhos escaneavam cada canto, cada sombra, tentando identificar algum indício de saída daquele lugar para voltar à normalidade do meu mundo.

Foi então que deparei com uma porta discreta, de aparência desgastada, com dois ideogramas japoneses posicionados ao lado do número 444.

Por alguma razão que não soube explicar, hesitei por um breve momento. A curiosidade, no entanto, falou mais alto.

Com cuidado, girei a maçaneta e empurrei a porta devagar.

Do outro lado, encontrei uma sala escura e úmida. No chão, agachadas, havia várias figuras humanas pálidas cujos olhos vermelhos reluziam na penumbra. Elas viraram os rostos em minha direção simultaneamente, como se estivessem sincronizadas. O ar pareceu ficar denso, quase palpável.

A mais próxima de mim rosnou, sua voz baixa, mas carregada de ódio: “Saia daqui!”

Outra voz ecoou, mais alta: “Este mundo não pertence a você!”

“Vá embora antes que seja tarde demais para voltar ao seu próprio mundo!”

O tom era ao mesmo tempo ameaçador e profético. Meu corpo inteiro reagiu aos instintos de alerta. Fechei a porta com força e dei dois passos para trás, temendo que uma daquelas figuras pudesse atravessar as paredes a qualquer momento. Mas nada aconteceu. Apenas o silêncio permaneceu do outro lado.

Ao passar por uma loja abandonada, fui imediatamente atraído por algo incomum: peles humanas tatuadas estendidas em um varal improvisado, como se fossem mercadorias à venda. Antes que pudesse processar o que via, um homem jovem, completamente coberto por tatuagens intrincadas, surgiu do fundo da loja, gritando: "Saia daqui! Sai! Sai!” Seus gestos eram frenéticos, quase animalescos. Eu me afastei rapidamente, evitando atrair mais atenção.

Continuei caminhando, tentando ignorar uma sensação de estar sendo observado. Então, ao passar por uma grande loja cujas prateleiras estavam caóticas e produtos espalhados pelo chão, ouvi risos infantis vindos do fundo. Me aproximei cautelosamente e vi três meninos brincando com uma bola. Eram brasileiros, isso era evidente pela aparência e pelo idioma que falavam entre si.

"Vocês sabem como sair daqui?" perguntei, hesitante. Os meninos continuaram sua brincadeira como se eu nem estivesse ali. Tentei novamente, dirigindo-me ao garoto mais próximo. Ele finalmente me encarou, mas sua resposta foi cortante: "Não quero voltar pra casa! Quero ficar aqui!"

Neste momento percebi que aqueles três garotos eram os mesmos do cartaz preso no banheiro do posto de combustível e que tinha visto brincando na quadra de esportes próxima. Era tudo confuso na minha mente. Não conseguia processar um sentido lógico para aquela experiencia.

Antes que eu pudesse reagir, um grito rasgou o ar vindo da entrada do aeroporto. Um som gutural, carregado de ódio. Corri até a entrada da loja e então vi uma mulher horrivelmente magra, com a boca rasgada por um corte longo e profundo que ia de um canto ao outro do rosto. Sangue escorria dos lados da boca como uma caricatura grotesca de um sorriso. Ao seu lado, dois homens de terno preto e óculos escuros, parecendo agentes de segurança do aeroporto.

Ao me ver gritou, apontando com o dedo ensanguentado para mim: “Olha ele lá!”. Os homens começaram a correr em minha direção.

Senti meu coração disparar enquanto avaliava minhas opções de fuga. Foi então que uma mão pequena agarrou meu braço. Era o mesmo garoto da loja. "Corre! Vem aqui pra dentro!" - ele gritou, puxando-me para uma porta lateral.

Começamos a correr, atravessando algumas salas e corredores totalmente vazios em uma espécie de labirinto, até entrarmos em uma sala cheia de malas empilhadas. Derrubamos algumas no caminho para atrasá-los, pois já era possível ouvir os passos pesados dos homens atrás de nós.

Ao abrir mais uma porta, entramos em um mercado de peixes. Muito surreal encontrar um lugar assim dentro do aeroporto. Todos eram do mesmo tipo, provavelmente atum, mas de vários tamanhos. O ambiente era extremamente gelado, como uma câmara frigorífica, com peixes frescos espalhados sobre prateleiras de gelo. Atuns inteiros e grandes jaziam sobre bancadas de metal. O ar estava carregado de um cheiro forte de sal e sangue. Não havia ninguém lá, apenas um silêncio pesado e o som ocasional de água pingando das torneiras enferrujadas. Nesse instante percebi que o menino que me guiava tinha desaparecido. Estava agora sozinho. A qualquer momento os homens de preto poderiam abrir a porta e me alcançar.

No balcão central, vi panelas de metal e facas enormes. Sem pensar duas vezes, peguei uma das facas pronto para me defender. Joguei vários peixes no chão na intensão que eles escorregassem quando chegassem.

Ao abrirem a porta, um escorregou e outro atirou em minha direção. Os tiros erraram por pouco, ricocheteando contra as algumas panelas penduradas. Abri a porta dos fundos e estava novamente no saguão do aeroporto. À minha frente havia um longo corredor com várias portas. Temi abrir alguma delas, mas não tive escolha. Abri uma das primeiras pensando que logo os homens chegariam. Para minha surpresa era uma sala grande com uma pista de autorama de grande escala, com múltiplas faixas curvas dispostas em diferentes níveis e elevações. Miniaturas de carros de corrida decoravam a pista. Nas paredes, pôsteres coloridos de animes e jogos japoneses reforçavam que se tratava de um local divertido e temático.

Caminhei pela sala olhando atentamente todo ambiente. Ao ver uma cadeira vazia pensei em trancar a porta com ela, pois os homens poderiam ainda estar à minha procura. Fiz isso e procurei em volta outra saída. Localizei uma pilha de monitores antigos e torres de PCs, todos quebrados, que parecia obstruir uma porta. Retirei o entulho e tentei abrir a porta. Felizmente não estava trancada. Cauteloso, abri devagar e vejo um ambiente estranho, semelhante a um laboratório futurista. Escuto os homens baterem e forçarem a porta que eu havia travado com a cadeira. Precisava sair logo dali.

  

6 – O Cientista Maluco.

Abri a porta com cuidado. Uma pequena sala mal iluminada estava separada de outro ambiente por uma cortina escura. Dei alguns passos cautelosos, sentindo um líquido espesso e gelatinoso grudar na sola do sapato. Gotejava do teto em fios lentos, quase vivos, formando poças viscosas no chão. Esfreguei os pés no piso cheio de rachaduras, tentando remover o excesso, mas fui interrompido por um gato preto que rosnou repentinamente aos meus pés, surgindo das sombras como uma aparição. Dei um salto com o coração acelerado.

Abri a cortina e olhei o ambiente. Era um pandemônio organizado. A definição mais precisa que se pode dar ao que parecia ser a fusão entre um monte de ferro-velho e um laboratório clandestino - peças soltas de motores, hélices enferrujadas, pneus, painéis de aeronaves antigas entre outros itens velhos estavam empilhados ao lado de tubos de ensaio manchados de graxa, garrafas com líquidos de várias cores. Monitores antigos espalhados por uma grande bancada piscavam freneticamente, exibindo códigos desconexos.

No centro da sala, chamava a atenção uma estrutura imponente: um armário de duas portas, recoberto por pedaços de espelhos de formatos irregulares, fios coloridos e tubos de válvulas de antigas TVs. No topo uma sirene vermelha completava o estranho móvel. O interior era forrado com couro negro com pequenas lâmpadas azuis e orifícios que liberavam um gás azulado.

Do fundo do laboratório, uma voz aguda revirou minha memória - “O avião! O avião!”

Atrás de um amontoado de monitores quebrados, surgiu uma figura baixa, um anão idêntico ao personagem Tattoo da antiga série de televisão Ilha da Fantasia. Vestia um jaleco branco amarrotado, cabelos pretos espetados em todas as direções, óculos grossos com lentes rachadas e uma expressão de puro êxtase científico. Ele andava aos saltos pelo laboratório, agitado e rindo como se tivesse sobrevivido a uma descarga elétrica. Em uma mão segurava um rádio de pilhas coberto com fita adesiva e botões improvisados e na outra empunhava uma antena de bambu de quase um metro, balançando-a como se procurasse captar sinais vindos de outro mundo.

Quando me viu, arregalou os olhos. Fez uma pose dramática, apontando para mim como um advogado acusando um criminoso em um tribunal.

“John! É você? Como pode estar aqui se ainda não terminei de construir o armário quântico?” Falou com um espanto quase teatral.

Levantei as mãos devagar. “Calma, calma, não sou John. Na verdade, estou procurando por ele.”

Ele me olhou com desconfiança tentando entender um quebra cabeça cujas peças não se encaixavam e explicou:

“Eu teletransportei John Titor para outra realidade e agora não consigo trazer ele de volta, mas conseguirei assim que terminar de consertar meu armário do tempo.” Falou em tom resignado colocando os instrumentos que carregava na bancada.

Tentei desfazer a confusão. “Não, não... Não procuro por John Titor. O John que procuro é John Zegrus!”

A expressão dele se contraiu num misto de choque e ofensa.

“O que? Zegrus?! Isso é um absurdo! Um completo impostor! Ele é um produto residual de uma linha de mundo divergente! Uma lenda urbana de anos atrás. Titor é o verdadeiro! O profeta do caos que o mundo aguarda!”

“Espere!” interrompi. “Talvez ambos existam… mas em universos diferentes. Multiversos distintos, entende? Eu mesmo não sou daqui.”

Ele me encarou por um longo tempo. Esboçou uma risada contida, como se ele tivesse entendido alguma coisa que eu não compreendia.

“Então você também é um viajante do tempo... interessante... muito interessante...”

Ele andou em círculos ao meu redor, murmurando equações imaginárias. Olhou para mim com um brilho maníaco nos olhos e disse:

“Estou tentando estabilizar o desvio temporal e reverter as camadas de fótons do tempo. Mas os homens de preto estão atrás de mim porque eu descobri demais. Eles são do Conselho de Investigação Paranormal. Querem me impedir de fazer contato com outras realidades.”

Assenti, entendendo que ele também era caçado, como eu.

“Eles também me perseguem”, confessei.

Ele sorriu. “Somos irmãos de infortúnio, então. Mas talvez o destino nos uniu por algum motivo. Eu vi um homem há poucos dias. Deve ser quem você procura. Não era oriental. Foi detido por seguranças do aeroporto. Tinha documentos estranhos, falava coisas desconexas...”

“É ele!”, interrompi. “Só pode ser Zegrus. Pode me levar até ele?”

“Sim, mas teremos de ser discretos. Aqueles homens estão por toda parte.”

Saímos juntos, atravessando corredores escuros, usando passagens escondidas por trás de painéis soltos e portas ocultas. Tive a impressão que ele estava habituado àquelas passagens como se estivesse muito tempo ali. À distância, vi os homens de preto rondando. Em alguns momentos do percurso, tivemos de parar atrás de colunas, agachar em vestiários, nos esgueirar por entre salas abandonadas.

No caminho, passamos em frente a uma porta estreita entre duas lanternas vermelhas. Três mulheres jovens e seminuas acenaram para nós com gestos sedutores, chamando-nos com os dedos.

“Ignore-as!”, disse o homenzinho firme. “Se você entrar ali, estará perdido para sempre. São armadilhas da Yakuza. Mulheres traficadas de outros mundos. Lá dentro... são monstruosidades que sugam sua energia vital até restar do seu corpo só pele e osso. A porta se fecha para sempre. Quem entra nunca mais sai de lá.”

Desviei o olhar, evitando olhar aquelas mulheres que pareciam implorar por algo… ou fingiam.

Continuamos. Após várias salas, lojas abandonadas e corredores que pareciam dobrar sobre si mesmos em um interminável labirinto, mas sempre com cuidado para não sermos visto, chegamos a uma porta trancada, protegida apenas por um simples trinco.

“É aqui. Preciso voltar para meu laboratório. Eles me rastreiam pela respiração. Boa sorte, viajante do caos.”

Sem esperar meu agradecimento, voltou correndo, quase aos pulos, pelo corredor e gargalhando até virar para outro corredor.

  

7 - Reencontro com John Zegrus.

Abri a porta com cuidado. Ali dentro, sentado em um banco de madeira, estava ele, John Zegrus. Ele levantou os olhos e me encarou na entrada da porta. Um leve sorriso surgiu da sua expressão resignada. “Helios...” murmurou, inclinando a cabeça para trás.

Ele se levantou devagar, aproximou-se da porta, olhou os dois lados do corredor e voltou-se para mim com expressão de preocupação. "Você não deveria estar aqui..." disse, fechando a porta cuidadosamente, certificando-se de que ninguém me visse. "O que aconteceu?" Perguntou olhando para mim com curiosidade.

Expliquei como pude. “Você demorou a voltar para o carro, então fui ver o que estava acontecendo. Entrei no banheiro e minha última lembrança foi um ponto luminoso vermelho no espelho. Depois, me senti tonto e, quando saí do banheiro estava neste lugar horripilante. Tentei voltar, mas o banheiro já não era mais o mesmo do posto de combustível. Era outro, deste mundo.

Zegrus assentiu lentamente como quem compreende a situação e explicou: "Este é o Aeroporto de Haneda ou o Aeroporto Internacional de Tóquio. Estamos em um multiverso diferente do que estávamos. Essa situação é um risco comum em viagens interdimensionais. Por isso que o mecanismo de viagem ao passado a que fui submetido ser arriscado e perigoso. É preciso estar preparado para imprevistos quando transitamos de um universo para outro.

"Mas onde exatamente estamos?", indaguei preocupado?

“Estamos em um Universo-Lixo”, disse ele, com tom grave e continuou:

“Este é um universo intermediário, bizarro, surreal, onde coisas incompletas e rejeitadas são acumuladas. Fica entre dois mundos paralelos. É como o sótão de uma casa, onde ficam guardados os materiais de construção que não foram usados durante a obra e se acumulam outros objetos inúteis. Aqui repousam restos de tempo e espaço incompletos, junto com fragmentos da mente humana, criando uma realidade instável e caótica. Emoções descontroladas, pensamentos desconexos, medos profundos de todas pessoas... tudo isso molda este lugar.

Respirei fundo, tentando absorver.

“As pessoas que você viu aqui, com comportamentos repetitivos e atitudes estranhas, são criações mentais, lendas urbanas, medos, sonhos, personagens da literatura e fragmentos da imaginação humana que se misturam, dando vida a esse ambiente surreal e às figuras bizarras que você encontrou aqui. Quanto mais pessoas acreditam em algo, mais real se torna neste plano dimensional. Fez uma pausa massageando os próprios ombros tensos e com uma expressão de que tivesse lembrado outro ponto importante, falou:

"No entanto, existem outros tipos de universos paralelos, como os chamados Universos Criativos. Esses são formados pelas criações mentais humanas, mas parecem normais e habitáveis. Neles, você vai encontrar super-heróis do cinema e das histórias em quadrinhos, personagens fictícios da literatura e até Papai Noel... a mente das crianças é poderosa." Ele sorriu brevemente. "Tudo o que milhões de mentes imaginam juntas ganha forma e vida em algum lugar do multiverso. Por exemplo, existe um multiverso onde o Planeta dos Macacos é real. Foi criado pela força mental coletiva de milhões de leitores e espectadores."

Zegrus fez uma pausa e completou: "Existe ainda o universo dos mortos, mas não tenho tempo para explicar agora. Você precisa voltar rápido." - disse olhando para a porta com ar de preocupação.

Ele tirou do dedo o anel com pedra vermelha e colocou-o na minha mão. "Para transitar entre os multiversos use isto. Coloque o anel diante de uma superfície refletida, como vidro ou metal. Quando o ponto luminoso vermelho aparecer, afaste o anel e toque no ponto com o dedo, pensando no universo para onde deseja ir. Sua mente será teletransportada para lá. Se não for para o lugar certo, repita o processo até acertar. Com o tempo, aprenderá a guiar sua mente com mais precisão. Mas lembre-se: quem estiver tocando você no momento da ativação será levado junto. Você poderá ir para o passado ou futuro, mas sempre em outro universo, não o seu."

Eu estava admirado com tanta informação que desconhecia. Por fim, tocou as duas mãos nos meu ombros e finalizou: "Esse anel é para propósitos nobres. Use-o para salvar vidas e mudar destinos para bem."

Olhando para minha mão com o anel disse: "Coloque-o no dedo que couber, não importa qual deles."

Coloquei no dedo médio da mão direita e indaguei: “O que vai acontecer com você? Como sairá daqui?”

“Eu serei sentenciado a um ano de prisão por ter entrado ilegalmente no Japão. Mas estou preparado para escapar dessa situação sem o anel. Lembra, sou militar e especialista em extração e inserção mental. Não entenderão meu desaparecimento e pensarão que eu tirarei a própria vida, mas nada de grave me acontecerá, apenas minha mente retornará para meu mundo.”

“E nos veremos de novo?”, perguntei, preocupado.

Ele sorriu. “Se houver necessidade, sim. Eu e os outros pesquisadores da Neuralink estaremos acompanhando você do nosso universo. Quando a campainha da sua casa tocar e não houver ninguém na porta, saberá que estamos por perto. Vamos enviar ideias sugestivas à sua mente. Usaremos técnicas avançadas para enviar para seu cérebro "inputs mentais" com orientações do caminho que deve seguir para iniciar a fundação de Taured. Mantenha-se receptivo, com a mente aberta e as ideias virão naturalmente."

"O projeto que você apresentará ao mundo será um embrião. Não precisa de estudo profundo, mas uma semente embrionária. Depois outros mais preparados acolherão o projeto embrionário e ajudarão a tornar realidade no seu mundo o que já é no nosso. Nós guiaremos você para fundar Taured."

Tão logo terminou ouvimos passos e vozes no corredor. Estavam perto.

“Precisa voltar agora”, disse ele, olhando nos meus olhos.

A tensão cresceu em seu rosto. Procurava algo. Seus olhos pousaram sobre a maçaneta metálica da porta.

“Isso aqui serve.”

Pegou minha mão e aproximou o anel da maçaneta.

“Pense no seu mundo. Visualize. Fixe seu olhar na superfície da maçaneta e pense no seu mundo, sua vida, sua casa, as coisas que mais gosta. Deseje com bastante vontade de estar no seu mundo.”

Vi que a pedra brilhou ao mesmo tempo que um ponto luminoso apareceu na superfície metálica da maçaneta.

“Agora! Coloque o dedo no portal!” Ordenou com muito vigor.

Vi a maçaneta ficando turva, comecei a ficar tonto e não vi mais nada.

 

8 - De Volta ao Cemitério.

Abri os olhos com uma forte dor de cabeça e uma tonteira que me fez cambalear levemente. “Meu Deus… o que é isso?”, murmurei, levando instintivamente as mãos à cabeça. Estava diante do túmulo do pai da minha amiga sem entender o que estava acontecendo.

Confuso, olhei ao redor. "Que sensação estranha... Isso nunca me aconteceu!" pensei alto, tentando organizar meus pensamentos. Olhei para o relógio no pulso: o ponteiro marcava 17h50.

Levei as mãos à cabeça novamente, tentando aliviar a dor lancinante. Uma sensação de déjà-vu tomou conta de mim com uma intensidade avassaladora. Por mais que eu forçasse minha mente, não conseguia lembrar exatamente o que, quando ou onde aquilo já havia ocorrido.

De repente, veio uma onda de ânsia de vômito tão forte que precisei me apoiar em um dos túmulos próximos para recuperar o equilíbrio. Meus joelhos fraquejaram e fiquei ali por alguns segundos respirando fundo, tentando acalmar-me. Quando levantei os olhos, notei que o cemitério estava vazio, sem ninguém à vista. Ainda zonzo, cambaleei até o carro, abrindo a porta com dificuldade.

Lembrei-me do eclipse solar que deveria estar em seu ponto máximo naquele momento. Mas, mesmo sabendo que era um espetáculo raro da natureza, não tinha condições de admirá-lo. Fiquei sentado dentro do carro por cerca de cinco minutos, esperando que a sensação de mal-estar passasse.

O entusiasmo inicial pelo eclipse desaparecera completamente, substituído por uma sensação opressiva de desconforto físico e mental. Assim que me senti um pouco melhor, liguei o carro e continuei minha viagem em direção a São José do Norte. No entanto, ainda me sentia fraco e desorientado. Decidi que precisava descansar e que ficaria sozinho em um hotel. Gravei uma mensagem de áudio para meu amigo: "Não espere por mim hoje. Nos encontramos amanhã." Encerrei sem dar muitas explicações.

Ao olhar para o painel, percebi que o combustível estava na reserva. Apesar de preocupado, só queria chegar ao centro de São José do Norte o mais rápido possível para encontrar um lugar para descansar. Ao passar pelo Posto Gibbon, senti novamente aquela mesma sensação avassaladora de déjà-vu. Nunca estive antes naquela região, mas aquele lugar era muito familiar e não entendi o motivo daquela sensação.

Chegando à cidade, procurei rapidamente por um hotel disponível e me hospedei no primeiro que encontrei. O Hotel Caçulão era muito simples, talvez nem merecesse uma estrela de classificação. Não estava preocupado com isso, pois nas condições em que eu me encontrava só queria era um lugar quieto para me deitar e descansar

No quarto, após tomar um banho quente, deitei na cama, tentando organizar meus pensamentos. Tive a forte impressão de que algo havia acontecido no cemitério, mas não conseguia me lembrar exatamente o que tinha sido. O cansaço era imenso, tanto físico quanto mental. Resolvi relaxar a mente e não pensar em nada. Apesar disso, não tinha sono. Fechei os olhos por alguns minutos, apenas escutando o silêncio do ambiente.

Quando abri os olhos novamente, virei-me para o lado. Meu olhar pousou sobre a TV. Pensei em ligá-la, mas o controle remoto estava na mesa ao lado do aparelho. Não quis levantar e fiquei paralisado por alguns segundos, observando o pequeno LED vermelho de standby da televisão. Aquele pequeno ponto luminoso me fez lembrar de algo — a mancha vermelha no vidro do retrato no cemitério. De repente, flashes começaram a surgir em minha mente. Comecei a lembrar do momento em que toquei aquela mancha vermelha e da presença de John Zegrus.

Aos poucos, as peças começaram a se encaixar e lembrei-me do diálogo com ele.

A urgência de registrar tudo me tomou por completo. Levantei e fui até a mesa. Abri o notebook e comecei a digitar. As lembranças fluíam com clareza, como se estivessem sendo ditadas por algo dentro ou além de mim. Registrei cada detalhe na mesma ordem dos acontecimentos daquilo que parecia ter sido um sonho, desde o momento do toque na mancha vermelha até meu retorno confuso ao cemitério.

Quando finalmente terminei, olhei para o relógio que marcava 01h27 da madrugada de 3 de outubro de 2024. Fechei o notebook e suspirei profundamente. O silêncio do quarto parecia quase sagrado. Finalmente, permiti-me relaxar e adormecer.

Acordei por volta de meio-dia. O corpo relaxado e a mente estranhamente calma. O sol entrava filtrado pelas cortinas, projetando linhas douradas sobre o piso de cerâmica.

Levantei-me devagar.

Foi então que vi. Sobre a mesa, ao lado do notebook fechado, estava algo que não deveria estar ali.

Um anel com uma pedra vermelha intensa. Logo reconheci: era o anel de John Zegrus.

Fiquei imóvel por alguns segundos, encarando aquela joia que atravessara sabe-se lá quantas dimensões.

Peguei-o nas mãos, girando-o entre os dedos enquanto em meus pensamentos refletia sobre o peso daquela presença. Aquilo confirmava tudo: o encontro com Zegrus e sua revelação sobre a existência de Taured, a viagem interdimensional, as revelações sobre os multiversos... tudo aquilo não era sonho ou alucinação. Era real. E agora, com o anel de Zegrus em minha posse, sabia que minha jornada não havia terminado, mas estava apenas começando.

 

 

PARTE 3